Pontes

Sob o ponto de vista ocidental, temos ainda 10 meses pela frente. Mais de 300 dias. É muito. Porém, depois de meses de divisão, grito, baixaria, trincheira e farpas desastrosamente trocadas, já há um consenso no Brasil.
Ainda se discute se a Terra é plana ou redonda, se o Hitler era petista, se Stalin recebeu prêmio Nobel da Paz, se a agência Reuters tem mais credibilidade que a corrente do WhatsApp da vizinha e se eu tenho que ir para Cuba ou não (essa achei fofíssima, ouvi em 2014 e mês passado). Infelizmente, o nosso surto coletivo de fúria nos últimos meses do ano passado derreteu e deformou boa parte da nossa coerência- e eu oro para que as células dessa sejam regeneráveis.
Mas para 2019, um triste consenso em adjetivo único: pavoroso. Nem 2 meses completos e as tragédias do ano já mataram pelo menos 350 pessoas. O rompimento da barragem em Brumadinho, o incêndio no centro de treinamento do Flamengo (CT Ninho do Urubu), a morte terrível do jornalista Ricardo Boechat, fortes chuvas e enchentes na capital carioca. Gostaria que esse ponto final fosse de fato uma ênfase de fim, término, de “fechou a lista, pessoal”; mas é inevitável a sensação de presságio que se manifesta do caos, da tristeza e, ainda por cima, do quadro caótico e cafona que pintam parte de nossos 3 poderes numa velocidade que me assusta. Aliás, só a notícia do episódio do CT Ninho do Urubu tirou  meu foco das tragédias de natureza da política.
Na sexta-feira (8), um incêndio atingiu o alojamento do centro em que vivem os atletas da base do clube flamenguista e no momento em que as chamas começaram, os garotos dormiam. 10 mortos e 3 feridos. Li sobre na manhã seguinte e até agora eu sinto isso como um tapa no rosto. Não há maior  covardia do que a da morte que atinge sem possibilidade de defesa, muito menos tirania mais insana do que interrupção de um sonho. Eram adolescentes que pularam o muro da inocência utópica do “quero ser jogador de futebol” da criança e entravam pela porta da frente de um dos maiores times do país.
Em frente ao site de notícias que estampava a foto do local, chorei pela covardia e pela tirania da morte. Depois pela dor dos pais. Pelo fim injusto da trajetória. Por se perder ali um pouco de nós, humanos. Porque era uma noite de sonhos.
foto que fiz no trânsito de Montevideo (2018)
Já com dor de cabeça, peguei algumas lágrimas caindo também de remorso, agora mais pesadas que as anteriores. Por detrás da fumaça que me  entupia os olhos, enxerguei as muitas vezes que eu esbravejei contra mim, contra o relógio e contra qualquer força mística que o valha por ver meus pés longe da pista de acesso que eu quero, desperdiçando todas as horas de sono que as minhas sextas reservavam para que eu chegasse nos sábados. Olhei tanto para o muro, que me esqueci de olhar para o chão e calcular o quanto eu já subi.  

A realidade é concreta, mas não é o topo que é privilégio e sim o sonho.

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