Chão de estrelas

Passarela do Samba na Dr. Monteiro. Arroio Grande, 2019
Sempre me alertaram: no Brasil, o ano só começa depois do carnaval. Privilegiada por uma série de fatos socioeconômicos, confesso que só comecei a sentir isso de fato esse ano, com os dois pés na idade adulta em que me parece que para finalizar um projeto, pagar uma conta ou, até mesmo, dar um passo eu preciso do aval e da assistência daquele único funcionário daquela repartição que está de recesso, depois férias, depois de licença-prêmio e, opa já é carnaval, recesso de novo. 

Mas tudo bem, a idade adulta também tem me ensinado a ser paciente e entender que nem sempre o tempo “das coisas”, da “vida”, do universo, de Deus e da burocracia (aaaah, e essa tem tempo!) serão iguais ao meu tempo. 
Enfim, cá estamos. No terceiro mês do ano, já nas cinzas, na pós euforia das plumas e paetês, na expectativa de começar o ano “valendo”. Prontos para esquecer dos micos ébrios, das fantasias cômicas e lembrar de nunca mais passar tanta purpurina de novo depois de achá-las grudadas até na sola do sapato.

Começou o ano. Pelo menos para nós que temos no carnaval uma das principais referências.  Começou o ano novo brasileiro. E começou mal.

Se nos primeiros dias de festa o país foi destaque em todos os veículos de imprensa e dos tópicos mais comentados mundialmente nas redes sociais pela grandiosidade das comemorações, pelo luxo das escolas de samba e pela alegria dos foliões que receberam milhares de turistas, agora a gente paga com ressaca moral por mais um delírio público do presidente Jair Bolsonaro no Twitter.

Na terça-feira (5), Bolsonaro publicou um vídeo com conteúdo pornográfico em seu perfil na rede social, indicando que aquela era a realidade do carnaval brasileiro. Ainda que não pareça, a situação aqui é um líder político representando sua nação através de um canal oficial de comunicação. Assim, o presidente descreveu ao mundo com escracho, indecência e pouquíssimo conhecimento a principal festa brasileira- e se ele não respeita a esfera humana, dado que o carnaval contempla u traços da  nossa cultura e é espaço de expressão de um ano inteiro de trabalho e arte, que cumpra uma vez na vida a sua real função, com pelo menos uma cínica empatia aos dias que mais movimentam a economia nacional.

Mas essa análise fria e simples só me foi possível agora, em que escrevo fora das cordas, longe da Dr. Monteiro, e escuto barulhos das pessoas recolhendo as cadeiras, anunciando a descaracterização da Passarela do Samba. Agora volto para o dia útil, para o ano do Messias que veio não sei de onde com mais do mesmo: promessas que soam como sátiras, uma turma que parece Os Trapalhões num episódio de 1980 e um balaio cheio de laranjas, das mais comuns, que a gente acostumou a ver podre no fim da feira. 

Agora, lendo matérias e colunas opinativas sobre, tudo faz sentido. É o mesmo Bolsonaro de sempre!Que pena! Tentei ser otimista, como mandou o eleitorado envergonhado. 
Coração na bateria. Arroio Grande, 2019.

Todavia, quando recebi a notificação do aplicativo de notícia contando a polêmica, eu estava lá dentro das cordas na avenida. No mesmo dia em que o presidente atrás de uma tela contava nosso país distorcido para o mundo, eu tava com o pé no asfalto que eu cresci, que agora sob confetes, passos, sorrisos, música, serpentinas e espumas brancas parecia um chão de estrelas.
Com o coração perto das baterias da Unidos do Promorar e da Acadêmicos do Grande Arroio (as duas escolas que desfilaram na terça-feira), eu enxerguei rostos emocionados, cantando com força cada estrofe de cada samba enredo; vi ombros firmes sustentando fantasias impecáveis que brilhavam e refletiam noites e noites de esforço, dedos cortados e economia resguardadas para sustentar as noites mais brilhantes do calendário; virei a cabeça para trás e cumprimentei conhecidos que batiam palma nas calçadas, com toda a nobreza de quem conserva uma cultura milenar do verdadeiro carnaval.


Madrinha. Arroio Grande, 2019.

É a época que a gente lembra o quanto a rua é nossa e o quanto de nós ela tem. E não é preciso mandar ela brilhar, como sugere a canção, porque isso já o faz. É preciso mostrá-la para o mundo como ela verdadeiramente  é.


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