De longe

foto que fiz da janela do Rainha, saindo da Rodoviária de Pelotas, rumo à Jaguarão (2019)


O primeiro casamento com o embaixador francês, a filha culta e feminista, os longos cabelos loiros, a pele hidratada e o cargo na editoria internacional do canal de televisão que ocupava todos seus finais de tarde durante o curso de jornalismo no início dos anos 2000. Com esse gabarito, aos olhos de quem vê de longe, Eloísa é sortuda, ou muito esforçada, ou os dois, porque, afinal, a vida é um somatório de “sorte, hora certa e preparo”, como dizia o avô. No mínimo, uma pessoa com tudo na vida. 
Mas o fato é que quem vê de longe nunca enxerga direito, muito menos o que se esconde debaixo dos óculos Versace que cobre a mulher da altura de suas sobrancelhas até o início das maçãs do rosto.
Recostada no Uber com a bagagem de mão no colo, Eloísa chora sem parar desde o momento que arrancaram do Salgado Filho. “Eu sempre detestei Legião, por que eu choro agora com esses clichês chatos?”, pensava buscando resposta na janela, hábito que desenvolveu ainda na adolescência quando viajava de Jaguarão para estudar no cursinho pré-vestibular em Pelotas, lá por 98.
“- Tá forte o ar condicionado?
-Já gostei menos.
- Moça?
- Pode deixar Legião, já gostei menos da banda. Não se toca mais atlântida em carro?
- O ar condicionado, senhora. A senhora tá gripada? Fungando aí, passando trabalho.Eu posso abrir as janelas.
- Ah, sim. Não, tá bom. Bonitinha a música Eduardo e Mônica, né?! Putz, eu nunca mais vi Godard depois que fui morar em Nice. E vai completar 15 anos.
- Estados Unidos?
- Nice? Não. França. Godard, o diretor de cinema que fez eu estudar francês com 14 anos. E olha que eu só fui saber falar bem a língua quando precisei ir no supermercado.... Ah, que falta o BIG faz.
- Eu vou no Zaffari sempre, senhora. A senhora tá vindo fazer o que?
- Consegui acumular 1 mês e meio de férias depois de 7 anos. Tô indo pra Pelotas ver os parentes…”

Que sobraram. Foi o que pensou em dizer. Mas o viés do assunto já estava melancólico o suficiente para alguém que conhecera há 15 minutos. 
Nunca se acostumou a não chamar Jaguarão de casa, muito menos Pelotas de destino final, a cidade que por anos foi o eterno ponto de passagem, em que só ia porque era onde tinha cursinho, depois porque era onde tinha faculdade, depois porque era onde conseguiu emprego para juntar as mensalidades da pós em Brasília. E nem naqueles 2 longos e secos anos em Brasília conseguiu chorar com Legião como fazia agora.
A música índios de arrancada lembrou das aulas de literatura no colégio. Chorou com saudade do almoço na cantina com o melhor amigo que morreu de câncer no estômago antes de se formarem. Eduardo e Mônica fez lembrar culpada do labrador Eduardo, grande e amarelo, que ela sempre deixava em Jaguarão e ia embora com saudade, mas com muito mais vontade de pegar em Pelotas todos os estágios da universidade e aumentar o currículo para entrar naquele canal de televisão que ocupava seus finais de tarde.
E, agora, Pais e Filhos parecia lhe puxar os tapetes dos pés. Era insuportável a saudade dos pais. Sempre que pensava sobre a ausência deles, sentia um misto de surpresa e orgulho por se enxergar em pé num mundo sem eles, ao que ela achou que nunca sobreviveria. Mas agora, nesse bom português, nesse “como se não houvesse amanhã”, a falta dos pais lhe doía os rins (ou os pulmões?), pelo peso de todos os dias em que ela colocou aquele estágio, aquela especialização, aquele canal de TV e aquela mudança para França na frente da companhia deles. Pelos aniversários que ela não estava junto para assoprar as velas ou pelo dia em que ela soube da perda de um dois meses depois, por telefonema da prima
E agora, já tirando os óculos para achar a carteira na bolsa, calculava o quão apressada foi em querer fazer a especialização tão longe deles antes dos 30 anos de idade e também por qual razão não pediu para o motorista trocar a playlist. “Tudo bem, é bom sentir tudo isso. É bom lembrar. Eu não aguento mais gente falando aquela merda de francês fazendo biquinho com casaco de lã batida e coturno. É CIIIINEMA E NÃO CINEMÁ, porra”, ela pensava enquanto corria para o guichê da passagem.
Rivotril para viagem. Acordou em Pelotas. Chamou o taxista que sempre levava e buscava das festas universitárias. Para sua surpresa, foi ele mesmo que foi. Não mudara nada- essa é a sorte dos homens carecas.
No caminho para a casa da irmã, passou por uma rua conhecida, ainda que não lembrasse o nome.Era a rua do Felipe, primeiro namorado que também caiu no erro de ir embora do país, da família, dos amigos, das lembranças e, principalmente dela, pelo deslumbre do exterior.
Esse devaneio sobre Felipe atingiu-lhe como a própria imagem no espelho. Bateu de novo a melancolia derrotista de ser a “parente bem sucedida de longe” que ama a família por SMS. Voltou a si para responder ao taxista.
“- E a França?
- Não consegui nada na vida. Corri pra nada. É tudo caro e falam pra dentro.
- O que?
- O lugar enjoado esse.
- A França? E o marido? E filha? Tudo certo?
- Amanhã me busca aqui na frente e me leva pra rodoviária, que eu vou pra Jaguarão no primeiro Rainha e ninguém me tira de lá. “

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