Corredor

“Então tá, Verinha. Era isso, que bom que tá tudo bem com vocês, Verinha. Manda um abraço pra todos. Hein, Verinha?!”

Como um show cultural e parte do passeio turístico que envolve ter que atravessar um prédio correndo- atrasada, já com cãimbra nas panturrilhas-  de ponta a ponta para se chegar no destino, o diálogo ecoava dentro das tijoletas do lugar.  No fim de tarde mais frio do ano em Pelotas, a voz masculina, rouca, possivelmente com mais de 70 anos, chamava Verinha e se consagrava como atração principal naquela galeria do centro.

Atraso. Cãimbra na panturrilha esquerda. 40 reais num xerox mequetrefe. Um grupo de semi-conhecidos no WhatsApp alertando com urgências que não durariam até o outro dia. Muita correria, muito frio e muita notificação para nada baixavam-me a cabeça para a tela do celular, no esforço patético de resolver a infinitude de inutilidades que cabe ali, na mão da gente.
Atolada na decadência do caos pós-moderno, a tal da conversa alta no corredor me irritava.

“Vou eu querer saber de Verinha. Fala baaaaixo, cara. Bah, o sem noção, tchê”, pensei. Possivelmente sem nem tirar a cara do celular. Alto e eloquente por si só, o som aproximava-se de mim conforme eu andava à porta com acesso à rua Felix da Cunha.

Surpresa! FInalmente cheguei até o ponto de onde falava o suspeito. Levantei a cabeça por descuido e assisti ali o fim da conversa.

“Mas, Verinha, não te esquece de confirmar com ele. Vê e me diz. Se cuidem, tá? Abraço. Até mais”.

O falante era um senhor, de uns 80 anos, dentro de um sobretudo de lã preta, que lhe escondia até as canelas. Pálido e grisalho, ganhava vida pela armação dourada dos óculos de grau que carregava no rosto.  E Verinha, cadê? Não estava ali. O senhor falava no telefone público, pregado na parede do lugar. Segurava o telefone numa mão e na outra uma sacola verde escura, simples, dessa de “venda da esquina”, que lembram nossa infância e dão saudade de ser simples, anônimo, sem cãimbra na panturrilha, nem cara no celular.

Minha hostilidade anterior à voz alta, deu lugar a culpa e remorso. Era ele, autêntico, sincero, que ainda liga quando quer falar com alguém, que ainda chama a pessoa no diminutivo várias vezes, sem vergonha nenhuma, que ainda usa telefone público e ainda conserva o hábito fraterno de ir na venda, pedir troco de bala, lembrar da infância e apostar no bicho. Inocente, entretido em saber do dia da Verinha, por quem chamava muitas vezes na mesma conversa. E eu, correndo e resolvendo  com a cara por trás de um aparelho, que me dá o conforto de aparecer para as pessoas sempre numa foto bem maquiada, tirada do melhor ângulo.

Minha vulgaridade diante da autenticidade de um senhor de 80 e poucos. Deu certa inveja, vontade de pegar o telefone também, ligar para ouvir a voz de alguém, saber como foi o dia de um amigo antigo, carregar uma sacola de rapaduras da venda e desligar os problemas de comunicação assim que encaixasse o telefone no gancho. Sem a exposição vulgar, o like, a selfie, o crush, o meme, o twitter, o hype, o blog pessoal, modo público, filtro, fofoca, notícia, STF, Arma, 39 Kg de Cocaína no avião do Bolsonaro, 80 tiros disparados por militares, crime do Estado, notificação, outra notícia, Lula, Dólar e esse caminho sem fim.

Talvez tudo que eu precisasse mesmo era isso. A Verinha, o telefone na parede, um peso que servisse numa sacola verde de venda de esquina. Talvez um telefone no gancho me fizesse esquecer que pessoas dentro da mesma fronteira que eu defende torturador, Juiz corrupto, presidente mentecapto. Talvez um “câmbio, desligo” fosse o necessário para eu ser inocente o suficiente em chegar em casa, tirar os sapatos, ligar a vitrola com algum disco do Belchior e esquecer que sou governada por um dos Estados que mais mata inocente no mundo, em nome da moral e dos bons costumes.

Telefone na parede, câmbio, desligo. Acabou e até amanhã. Era tudo que eu queria, mas precisei da minha vulgaridade para tirar uma foto do senhor de 80 e poucos e guardar essa simplicidade em extinção, para a posteridade.

Terminei o clique, ele me flagrou e riu com pena.

Comentários

  1. Todos somos um pouco dos outros e cada segundo compartilhado é demais para caber numa mensagem. Droga, tô fã do blog também... será possível? Sorte ter compartilhado uma conversa Beatle para Porto Alegre!

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