Na lama

    Tenho um amigo que começou a fazer pilates há uns 2 anos e desde então seu principal conselho, independente das perguntas, é: “vai pro pilates!”. Eu achava engraçada e bonitinha a forma como ele tinha se encontrado naqueles exercícios matinais, mas sem pretensão de “ir pro pilates”, porque eu sei que com coisas de exercício físico eu pago 1 mês e vou 2 dias.
Foto: Moisés Silva/O Tempo/Estadão Conteúdo
Tanto que até esqueci do conselho e agora que me veio essa lembrança nítida. Como aquele amontoado de letras no pote em cima da mesa que um belo dia, depois de alguns meses cursando a primeira série, virou “nescafé” e eu nunca mais consegui enxergar a bagunça simples  que eu tanto gostava de um amontoado de letras no pote. Lembrei essa semana “vai pro pilates!”, porque me peguei no mesmo entusiasmo e devoção com a Bahia.
“ - Amiga, já foi para a Bahia?
             - Não. Mas vou para Alagoas no fim do mês.
             - E a Bahia? Vai para a  Bahia.
             - Que que tem?
             - Bah, sério. Tenta ir. Eu preciso voltar para a Bahia!”

Surpreende-me que eu tenha ido lá pela primeira vez só em maio do ano passado. Sempre gostei de estudar a história do mundo- ainda que ela seja uma história de atrocidades, como disse uma vez o paraninfo da minha turma de Relações Internacionais-, mas principalmente a história da formação do Brasil. Foi uma experiência incrível, apesar de breve, e o problema é que eu não consigo explicar com mais do que “vai pra Bahia!”.
Eu precisava de uma imagem publicitária para ampliar meu poder de persuasão, então joguei “Bahia” no google pelo celular da amiga que mês que vem desembarca em Rio Largo. Apareceu sobre o Esporte Clube Bahia, sobre Casas Bahia e, por fim, as últimas notícias sobre o estado com uma manchete em destaque que tratava da tragédia de Brumadinho (MG).
“ - Ué, rompeu alguma coisa lá também?”. Clicamos na hora.
Edinilson, um homem de 23 anos de Santo Amaro, município do Recôncavo Baiano, trabalhava no terreno da Vale no momento em que a barragem de rejeitos rompeu. O mecânico ficou desaparecido por três dias e na segunda-feira, 28, o corpo foi achado.  “Deus fez o milagre ainda de a gente encontrar o corpo e dar um enterro digno ainda. Muitos parentes não tiveram a oportunidade sequer de encontrar o corpo. Tá complicada a situação e eu conheço porque trabalhei nessa mesma empresa já, sei o que acontece ali”, respondeu o pai emocionado.
Possivelmente, essa família que ficou 3 dias sem resposta sobre o filho de 23 anos- que era casado e seria pai da primeira filha, que nasce daqui uns dias- está entre a lista de nomes aos quais a Vale vai pagar indenização de 100 mil reais.
Não sei se alguma indenização paga as lágrimas de perder um filho, irmão, marido e pai, ou apaga a imagem de encontrar o corpo de um familiar morto na lama, 3 dias depois do seu sumiço. Ainda assim, é estranho pensar que o método utilizado na barragem que rompeu era o que mais apresentava riscos e o lucro líquido da Vale, mineradora responsável, era de mais de 5 bilhões de reais no primeiro trimestre de 2018.
Enxergo na discrepância algo similar ao descrito por José Lins do Rego no livro Menino de Engenho, para ilustrar o abismo entre a casa grande, de seu avô, e a senzala. Talvez eu devesse estar apavorada agora com todos os prejuízos ambientais dessa “irresponsabilidade” (para usar um termo menos pior) da empresa, mas eu só consigo sentir pânico em ver um lado sempre como potencial vítima da lama que desce em camadas, espalha-se com força e mata um lado só.
Não tem EPIs suficiente para salvar a humanidade.

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