O transtorno

O programa Altas Horas, atração das noites de sábado da Rede Globo, é minha produção favorita da TV aberta. Faz tempo que eu não assisto direito, inclusive perdi o último. Mas ontem recebi notificação de algum aplicativo de notícia que esse gerou polêmica por algumas falas da atriz Carolina Dieckmann, convidada da ocasião.
“No meu segundo casamento, eu estava uma obesa. Com seis meses de gravidez, tinha engordado 20 quilos. Aquele vestido de noiva, gorda, branca. Piorou tudo!”, disse. Concluiu ainda que para ser “gata” tem que ser magra”.Bem como foi com o resto das pessoas que a criticaram, essa postura estilhaçou meu conceito sobre a atriz.
Eu soube quem era Carolina Dieckmann antes de saber um monte de coisa. Eu tinha 5 anos de idade quando ela interpretou a personagem Camila na novela Laços de Família, em que fez a fatídica cena chorando enquanto a raspavam a cabeça em função do tratamento de leucemia. Aliás, descobri o que era câncer aí, sem saber que meu pai teria a doença pouco depois. Na época de Laços de Família, eu fiquei encantada com a atriz, ela “parecia uma Barbie” e era a personificação da única beleza possível: loira de olhos azuis e, é claro, magra. Não havia dúvidas de que Carolina era perfeita- e talvez Freudexplique em algum livro a razão de, até ontem, eu nunca ter questionado essa
ideia criada ainda na primeira infância.
Na época em que eu soube quem era Carolina Dieckmann, eu era uma criança típica do meu tempo: passava a manhã com meus VHS preferidos, andava sempre com sapato de plástico nos pés (da Xuxa, da Scheila Carvalho e da Sandy), tinha fantasia da Tiazinha e cresci tomando coca-cola sem pudor algum. Mas eu não sabia ainda que, mesmo com hábitos típicos às crianças da minha idade, elas consideravam-me defeituosa. Soube com 8 anos de idade, na aula de dança.
“ – Tu viu como a Victória tá gorda? Uma baleia.
- Sim, que estranha
- Que baleia!”

Disseram as duas colegas atrás de mim. Lembro de fingir que não tinha escutado na hora, mas chorar no banheiro quando cheguei em casa. “Como assim sou estranha? Por que elas tavam falando naquele tom de raiva? O que eu fiz? Não eram minhas amigas?”, eu cochichava sozinha sem parar, com vergonha de compartilhar essas dúvidas com alguém da minha família e eles descobrirem que eu era “baleia estranha” para as pessoas da rua.
Olhava meu corpo no espelho e não via nada de errado, afinal, fui criada aprendendo que eu era linda, a cara do meu pai, e que eu seria muito inteligente na vida, porque já sabia compor músicas, fazer paródias e ser o centro das atenções das visitas imitando as pessoas da TV (e até da família!). Na minha cabeça, eu não tinha defeitos. Pelo contrário, meus pais e meus irmãos sempre me ensinaram a ser tratada e, logo, tratar-me com muito valor e estima e no colégio eu sempre recebia “parabéns” dos professores.
Mas ali, sentada no chão gelado do banheiro e com uma interrogação enorme na cabeça, eu vi essa ideia de autoestima se chocar com a realidade. 
Eu não sabia por que, mas o fato era que eu era “estranha”, feia, baleia e que a as pessoas me odiavam quando eu não estava ouvindo. Eu passei a entender que todas as outras coisas que tinham me dito na minha frente (“eu te amo, filha”; “tu és nota 10”; “tu é muito engraçada”) eram mentiras que, na minha ausência, davam lugar à realidade de eu ser alguém estranho e digno de ódio. Meses depois, depois de ter perdido a autoestima que me ensinaram em casa, saíram umas fotos de fim de ano do colégio e eu vi que de fato eu era a mais gorda da turma. Eu não vi se eu era feia e estranha, porque isso eu já tinha aceitado que eu era, eu só busquei o que eu tinha de diferente, para tentar consertar isso e reverter o ódio que eu merecia.
“- Mãe, me leva na médica para emagrecer?”

E a minha vida nunca mais foi a mesma. 
Eu aprendi a caloria de cada coisa que eu ingeria. Quando acordava, eu não me preocupava mais em ver Matilda, mas sim em levantar o pijama em frente ao espelho para ver se as costelas já apareciam-e chorei por meses me sentindo fracassada, até que elas aparecessem. Eu parei de ir às festas de aniversário, já que eu não sabia como fugir das mães das aniversariantes me oferecendo salgadinhos fritos. 
Comecei a andar 4 horas por dia na esteira ergométrica do meu pai- depois da academia- e parar de sair durante o dia na rua, porque ainda não estava com as pernas finas do jeito que eu queria e, na luz do sol, as pessoas poderiam enxergar esse fracasso e seguir me odiando.
Eu ainda me enxergava a baleia estranha odiável e desprezível que eu era na conversa que não estava ouvindo.
Um dia acordei pré-adolescente e as gurias da minha idade já falaram sobre “ficar”, “beijar” e “dar uma volta de noite no centro”. Foi sufocante demais imaginar-me, feia e esquisita, agora tendo que passar também pelo desprezo dos guris. Assim, não faltavam desculpas para eu ficar o maior tempo possível no meu quarto, até eu conseguir perder uns 5 quilos e assim servir numa calça
34 da Gang.
Eram dias de isolamento, por trás de letras tristes de músicas que eu descobria sozinha, comendo barras de cereais sem gosto no meu quarto e rezando para ter alguma doença que me permitisse perder uns quilos.
Eu não sabia se achava meu corpo e meu rosto realmente feios, mas eu partia do pressuposto de qualquer autoconceito ou opinião de pessoas amigas me iludiriam, como o modelo de “criança perfeita” que tinham me ensinado me iludiu enquanto as gurias atrás de mim tinham raiva por eu ser “baleia”. Não acreditava em nada que não fosse a visão depreciativa sobre mim e eu tinha medo de sair do quarto escuro em que eu vivia e descobrir coisas piores do aquela conversa- eu preferia criar mundos paralelos e me esconder neles. 
Foi difícil encontrar a porta certa para bater e chamar a Victória de 8 anos para brincar, mas a gente conseguiu se abraçar esses dias e é um esforço enorme convencê-la de que não tem perigo em sair à luz do dia. É difícil silenciar as vozes que conversam pelas costas na sala de dança, mas hoje ela já consegue entender o que é realidade e o que é o que outros criam como verdade deles.


*Texto de 5 de dezembro de 2018.

Comentários

  1. Lindo texto. Tu és linda. Por dentro e por fora!

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    1. Luiza querida. Que alegria ler isso <3 Sou fã do teu trabalho. Muito obrigada pelas palavras!!!!

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  2. Muito bom! Me encontrei em muitas linhas...Bj, Andréa.

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  3. O texto aborda um assunto muito delicado e que acontece com milhares de crianças, e que aconteceu comigo alguns anos atrás.
    Não conheço você pessoalmente, mas te acompanhando nas redes sociais.
    Porém, já admiro muito. Você é sem dúvida alguma uma mulher incrível e uma escritora fantástica que evolui a cada dia. Parabéns!
    Adorei o texto!

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    1. Claudinei, fico triste que tenhas passado por isso. O processo de autoconhecimento é longo, ainda mais na sociedade em que vivemos, mas espero que ele aconteça contigo da forma mais bonita. Muito obrigada pelo comentário. Também te acompanho e gosto muito do que escreves :) ainda bem que nos encontramos na internet!! Obrigada. Beijão.

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