O dedo no liquidificador

Acho lírica, poética e um pouco vintage a inocência de reduzir a democracia à voz das ruas. “DEMOCRACIA É A VONTADE DO POVO!”.  
Mais charmoso ainda é quando misturam a “vontade do povo!” com a “vontade de Deus!” para fazer funcionar uma mansão burocrática cinza, dura e seca, que arrecada imposto todo fim de mês- com isenção para a casa de Deus, é claro, e sem choro nem vela para quem faz dupla jornada de trabalho-  e estabelece salário abaixo da inflação- menos para quem tem acesso às suas suítes no andar de cima,  como os da “Justiça” e do Parlamento, que já estão para lá dos R$ 30.000,00 mensais.  
E como dói e amedronta concluir a partir disso o quão longe a vontade de Deus e do “Povo”  estão do bem-estar do trabalhador! 
Nesse ritmo de discursos sobre democracia, concepções líricas e vintagebeirando à ficcção,  começamos o ano no Brasil: vestindo branco e com um governo federal novo resultado da “VONTADE DO POVO!”- menos de 42,1 milhões de eleitores, entre votos nulos e brancos e abstenções.  Jair Bolsonaro foi escolhido por um eleitorado que se dividiu entre grandes torcedores do “capitão” e uma plateia tímida que só implorava pelo “Fora PT”, talvez sem saber que isso o Temer já havia feito (ou Cunha, ou Supremo Tribunal Federal, ou todos juntos).  
E em menos de 1 mês de governo Jair surpreende pela rapidez em tomar medidas coerentes às difusas promessas de campanha, aos discursos atrapalhados e ao olhar perdido das entrevistas pré-eleitorais em que mesmo com quase 30 anos de carreira política não sabe responder a uma pergunta sobre economia brasileira sem chamar o Paulo Guedes.  Entre essas medidas, está a assinatura na terça-feira (15) de um decreto que facilita a posse de armas, o que está em coerência com a postura enfática do presidente acerca da Segurança Pública durante a campanha eleitoral.   
Com isso, o que muda, como o próprio termo “posse” sugere, é que fica mais fácil é ter arma em casa e no local de trabalho. Isto é, as exigências para andar com arma por aí seguem as mesmas: o porte nacional é proibido, a não ser que o cidadão seja integrande das Forças Armadas, policial, guarda municipal em capitais ou cidades com mais de 500 mil habitantes, promotor, juiz, agente penitenciário, ou funcionário de empresa de segurança privada e de transporte de valores.  
A assinatura não parece corresponder ao fetiche brasileiro por pistolas daqueles fiéis do capitão que, com símbolos infantis com dedinhos, pediam por armas para que o “cidadão de bem andasse na rua em paz”. Agora, no máximo vão poder ter uma arma na gaveta. E, bem como disse o ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni, talvez o risco disso para cidadãos como ele, homens de classe média alta e alta, seja equivalente ao de um liquidificador. E isso seus planos de saúde cobre.  
Acontece que violência não se traduz apenas na que um assaltante faz ao pular o muro de uma propriedade privada ou um liquidificador faz a um dedo.  
O Brasil é, de acordo com dados da ONU, o quinto país em morte violenta de mulheres. Em comparação com países desenvolvidos, aqui se mata 48 vezes mais mulheres que o Reino Unido, 24 vezes mais que a Dinamarca e 16 vezes mais que o Japão ou Escócia. E a maioria desses assassinatos é provocada por parceiros das vítimas. Eu não sei se a arma na gaveta vai proteger a vida da morte. 

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