Unhas

Eu não aguento mais roer as unhas. Não sei como se dá o ritual, quando vejo já perdi metade dos dedos, nem sei quando comecei. Faz tanto tempo que talvez tenha sido no dia em que me nasceu o primeiro dente- que cena horrível.

Um álbum de memórias de mãos escondidas
O que lembro é a série de desfile de escola, aniversário, debut, formatura e todas as ocasiões especiais possíveis em que precisei esconder a mão na hora dos cumprimentos e das fotos. E é engraçado pensar agora o quanto eu sofria, quando mais nova, com a possibilidade de alguém descobrir que eu falhava miseravelmente na corrida da estética, com os dedos mordidos, as cutículas inflamadas e as unhas tortas.

Minha geração cresceu no pré-youtube, não tinha o fosso infinito de conteúdo inútil da internet para fugir do tédio. A gente se apegava a detalhes engraçados para se distrair e nisso, com a mão quase sem unhas, sofri também com a “fase esmaltes”. As gurias da minha turma falavam felizes sobre as novas cores, tendências e as farmácias da cidade que tinham os melhores preços. Agendavam manicure, iam juntas, sabiam da vida de todo mundo lá dentro e eu cada vez mais solitária e alienada com meus cotocos de unhas

Hoje, eu não aguento mais roer as unhas. principalmente quando a estação é propícia para noites de 2°C. Quando a água sai gelada da pia, é de pedir socorro. Dói unha, dedo, cutícula, alma. E aí eu começo a entender o valor das unhas não para usar o esmalte azul calcinha de alguma coleção “Fundo do Mar” da Risqué, mas como um sistema de autoproteção do meu corpo. 

Quando num ato vulgar e cotidiano como lavar as mãos, dói-me até a alma, de maneira pulsante, é como se meu pensamento longe, acelerado, ansioso e criativo, descesse da cabeça e se acabasse em um grito mudo nos meus braços.

Quarta-feira, 10 da noite. Sensação de 1°C. Pantufa nos pés e hora de lavar a louça. Abro a torneira e lá vem a água fria. 
Desfile, colégio, namoro, amiga, esmalte, farmácia, viagem, depressão, faculdade, livros, Lênin, fotos, Godard, Beatles, Elis Regina, rádio, Bauhaus, Copacabana. Tanta coisa, tanta ansiedade, tanta estratégia para o futuro, a discografia do George Harrison ao fundo, o inglês decorado e nada disso pode me salvar. 

Solitária sem unhas, sinto a água cada vez mais gelada e ainda nem  terminei de lavar uma caneca. Numa luta entre me concentrar e pensar e morrer de dor, me vem à cabeça, desbotada, a Guernica de Picasso. Mas isso também não me presta para nada, antes fosse uma unha.
10 e meia da noite e essa história de “mundo das ideias”, como sugeriu Platão- outro arrogante que pensava demais e se esquecia enquanto bicho- mais me parece uma fábula infantil, antes fosse uma luva de borracha para salvar meus dedos à essa altura já inertes debaixo da água fria. 

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