Crises

“Pero no es paragonable”. 

Parangorable? Panagonable? Meu Deus, não fazia a mínima de o que aquela jornalista palestrante argentina havia acabado dizer. A certeza única que eu tinha era a de que em uma fração de segundo a moça violentou a minha prepotência de guria da fronteira, que se acha fluente, fez proficiência, é fã de Drexler, torcedora do Nacional e acha que nasceu uruguaia “no corpo errado”. 

Calles de Buenos Aires. Marzo, 2019.
“Nah, não pode. Se enganou a castelhana, será? O que cargas d’água ela quer dizer. Vou tentar ouvir o resto do contexto, para ver. Se eu ainda lembrasse a palavra exata, jogava no google aqui” foi tudo que eu consegui pensar. E pensei tão alto, que senti que todo o resto da sala me olhou com cara de reprovação.  Que nervosismo! Minha vida era uma mentira, eu era uma farsa. Não quero mais essa balela toda, sei lá, melhor era cair senso comum, pegar a via mais fácil e fingir que quero muito algo como Berlim, Nova Iorque, Paris e algum idioma quadrado, sem grandes variações, que a gente aprende em intensivo. 

Foi a gota d’água. Epifania. Mudança de planos, de vida, novas metas para 2030. Nunca mais Almodóvar, calles Madrileñas, album do Fito Paez, foto na Corrientes, último single de El Cuarteto de Nos, cuia do Bolso (Bolso o time, Bolso do bem, não me entendam mal que eu nunca gostei de mito) a ventania da 18 de Julio. 

Intensa, ansiosa e sempre no rastro da síndrome do impostor, ali, naquele fim de tarde de sexta-feira no auditório da Uniritter na Zona Sul de Porto Alegre, eu tive uma das maiores crises de identidade. Parecia a duração dos meus 24 anos de vida passando sob meus olhos, na testa daquela argentina, mas na verdade tudo não durou mais de 10 minutos. Foi o tempo de uma alma humilde, com a decência que eu não tive- Ah, a prepotência da guria de fronteira!- perguntar “Paran...o que? O que quer dizer?” 
“- Ah, sí. No hay en português? Paragonable? Es una cosa comparable a otra.
- Ah, obrigada”
Ufa. Dessa palavra eu não esqueço nunca mais. Mas ali, olhando aquele ambiente acadêmico e já com foco voltado para a fala da palestra, sobre liberdade de imprensa e credibilidade da notícia, veio a segunda crise. Não sei o que Freud ou meu terapeuta diriam, mas acho que esse segundo pequeno surto foi mais de tristeza do que de identidade. Credibilidade? Liberdade de imprensa? 
Com que cara eu olharia para a ‘hermana’, sendo brasileira, parte de uma nação que ignorou o trabalho do premiado  jornalista Glenn Greenwald , do Intercept, e segue idolatrando Sérgio Moro?

Com que cara eu, enquanto acadêmica em um espaço de debate sobre a profissão que escolhi para exercer e tirar dela meu sustento, explicaria para a sujeita estudada, com pós-doutorado na Europa e tudo que é direito, que a cá en Brasil las personas pensan que sí, es paragonable, ser um civil que almeja o fim da corrupção e ser um funcionário do Estado, da Justiça, que deveria zelar a Constituição, que mina operações, sem provas, grampeia conversas telefônicas ilegalmente em nome de benefícios próprios e construção de sua própria imagem pública? E lo que es PEOR, como contar que chamam um sujo de herói? E um mentecapto de MITO? 

A crise existencial de outrora era mais confortável que essa de tristeza-vergonha-desesperança-vontade de sair correndo.

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