O violão vermelho

Foto: Exame/ Estadão Conteúdo
Já é abril. Quase 3 meses na escola nova e Lucas ainda não conseguiu se adaptar à rotina.  “Um menino quieto, educado e de humor triste para alguém com 7 anos de idade. Pouco rendimento e dificuldade de aprendizagem”, veio escrito no primeiro bilhete do professor para os pais. Aprender a ler era um sonho, mas agora sente dor de cabeça após o almoço e passa o dia agarrado às lembranças da creche, da prima Júlia que era sua colega, da bolacha maria do refeitório antigo e da “tia” Lú.  Às vezes a nostalgia lhe foge, se pega desperto pela gargalhada do vizinho de classe e começa a calcular quantos ali já respondem as vogais de cor.
Sente dor de barriga de vergonha, as bochechas morenas agora rubram humilhadas e só lhe resta a compreensão das silenciosas e acolhedoras últimas folhas do caderno. 
É lá que Lucas encontra abrigo da tempestade que cai sobre sua cabeça. Lembra de casa, desenha com o lápis verde a almofada que avó costurou para a sala de estar. Replica em preto os cabelos da mãe e, com detalhes e maior atenção, conta para o caderno sobre seu ídolo: um homem com corpo palito, mãos desproporcionais e capa de super-herói com o gênero destacado pelo chapéu e paletó segura um violão vermelho no colo, em cima de um palco com faixos de luz pintados de azul-celeste direcionados para si. Em cima da folha, como se título de um conto fossem, garranchos de caneta bic preta quase ilegíveis dizem “MEO PAI”.
A reclusão do aluno mais uma vez chama atenção do professor, que então pede para a classe seguir a música sobre o alfabeto e vai até Lucas ver o que tanto lhe prende os enormes olhos pretos ao pequeno cardeno laranja. 
- Lucas? “Meu” é com “u”. 
- Eu não sei cantar essa música, por isso estou desenhando. Desculpa, tio.
- Tudo bem. Mas você pode me explicar o que o seu pai está fazendo com 2 casacos num palco azul?
- Não são 2 casacos. É um paletó branco, porque ele canta samba assim, e uma capa de super-herói porque cuida das crianças da minha creche. Ele tá lá agora, ele é segurança.
Lucas não disfarça o orgulho de ter um pai artista e segurança. Os olhos  brilham para cima, esperando uma reação de surpresa do professor sobre seu pai ser tão versátil, multitarefas, talentoso e forte. Porém, é forçado a fechar o caderno e acompanhar a atividade de alfabetização. Finge que cantava, mas na verdade espiapela gola do moletom cinza com azul da rede pública do Rio de Janeiro se “a camiseta do Ben10 para festas” estáintacta. A mãe havia lhe jurado para que saísse da escola impecável naquele dia, já que a iam direto para a o chá de bebê da vizinha. “Lucas, você que não me faça passar vergonha com a gola encardida. Fica de moletom na aula pra não sujar a blusa, tá bom? Depois eu lhe dou um presente!”, foi que ela disse afobada antes de se despedirem pela manhã. 
O filho cumpriu a promessa e agora es com a camiseta 100% limpa, esperando os pais na porta. Nunca foi desobediente, mas é fato que quando tem uma recompensa envolvida nos termos de compromisso, ele não falha. Sonha em poder tocar o violão do pai e ter seu próprio grupo de pagode. 
18h10min e eles chegam no carro branco da família. 
A mão desceu, buscou o filho pela mão. Eles entram e o pai arranca. 
- E aí, Lucas. Copiou tudo do quadro hoje? – diz o avô do Lucas no lado  esquerdo do neto, sendo ignorado. 
Pai, desenhei você com violão de novo! 
- Ah, é? Você me mostra quando a gente chegar lá? Eu tô levando a viola pra lá, tá aí nos pés de seu avô. Pode pegar e ir imaginando qual música a gente vai tocar hoje. 
- Jura?! Boa! Exalta!!!!
- Vish, mas de novo? – repreende a mãe. 
O menino agarra forte o violão, examina e conclui que errou mais cedo. Ele é mais amarelo que vermelho. Mas não se abate, fingi que toca as cordas e se imagina no mesmo palco do clube do bairro com o pai, também na quadra da Mangueira, paixão da família materna. De cabeça baixa, com os olhos fixos para os dedinhos da mão esquerda dedilhando silenciosamente as cordas, estremece com um clarão que se abre contra o carro. Um barulho ineterrupto, grave e estridente, como da festa junina da creche cuidada pelo pai, que no banco da frente agora lhe tateia os joelhos.  
Levanta a cabeça com pavor, para entender o que se passava. Vê a face da mãe desfigurada em choro, o avô agachado no chão e sente a mão do pai, outrora tão conhecida e banal, agora lhe pesar no colo como a madeira inanimada do instrumento de cordas. Lucas berra e todos respondem, menos o pai, agora um corpo morto e mais um número nas estatísticas de vítimas mortas pela Polícia Militar. 
“Mãe, acorda o pai”, soluça. 
*Conto baseado na história de Evaldo dos Santos Rosa.

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