Bilhete

 “Amigo da gente só os dentes e ainda assim machuca”. Pedro fazia questão de repetir essa frase batida várias vezes. A mulher Liége jura de pé junto que quando casaram Pedrinho não era assim. “Te juro! Era direito, pensava rápido e até fazia palavras cruzadas. Um gênio... Mas agora, volta esclerosado da rua. É culpa da convivência com os velho do Café Aquários”, defende o marido sem disfarçar  o cíumes que sente do tempo que ele passa no café desde que se aposentou da fábrica por acidente de trabalho.

Para desgosto da esposa, no  primeiro dia útil de março a rotina de Pedro não foi diferente. Apressado, chegou na rua Sete de Setembro e, antes da parada no Aquários, foi à lotérica para comprar o bilhete da Federal. Na fila, ainda que com cara de paisagem, escapavam-lhe bufadas das entranhas enquanto lembrava com ódio do vizinho lhe roubou uns anzóis de pesca essa manhã. “Olha, tchê. Vou te contar, hein?! Só os dentes mesmo!”, gritava em silêncio e sozinho em sua cabeça.

Sem nenhuma fé na humanidade, Pedro tinha toda esperança do mundo naqueles vinte reais que carregava na mão para apostar. Tinha absoluta certeza que um dia seria rico. Milionário. Riquíssimo de sorte e por benção da mãe Lily que não conhecera, uma vez que morrera em seu parto,  mas que lhe deixara um Neruda de presente e lhe prometia em sonho toda noite, quando ainda era guri, que seu destino era ser feliz, rico, médico e pai. Com a “peste de ovário” de Liége e o analfabetismo, Pedro resguardava sua convicção e às palavras da mãe à parte do “feliz e rico”.

“Ô, Pedro. Deixa de ser besta. Feliz já somo.  Tu herdasse essa coisa louca de artista de tua mãe, foi?”- cortava-lhe as asas, inutilmente, a esposa.

Já segundo da fila para ser atendido, fecha agora os olhos bem forte, para pedir à mãe que aquele, enfim, fosse seu dia. Na cabeça do metalúrgico aposentado, o ódio de outrora se esvai em um fundo branco de onde surge Lily com um decote e o xale rosa de sua época de chacrete, O rosto da mulher sorri e ele responde: “Pode deixar, mãe. Vou ser rico, inteligente e te ler o Neruda um dia!”.

“SENHOR?? PRÓXIMO???!”

Pedro abre os olhos e dá um passo à frente com os 20 na mão. Sente de novo a azia de raiva da humanidade. Berra internamente contra o pai, que nunca o reconheceu por não aceitar a escolha de Lily, aos 19 anos de idade, pela vida de “televisão” e ainda a deixar “emprenhada” sem o disco do Pixinguinha. “Corno covarde! Minha mãe morreu foi de desgosto com aquele frouxo!”.

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