foi ontem


Última sexta-feira de 2018. Observo um alarde, um cronômetro coletivo.
Pessoas correndo contra o tempo, em modo público, por tentativas de ser feliz como não foram. O calendário é um rito e esse é o momento em que  chega a conta. 362 dias de sorrisos clareados, ângulos perfeitos, praias afrodisíacas, check-in em pontes, Beco do Batman, Museu do Amanhã, litro de cerveja na mão, taça de Clericot, pôr-do-sol em Punta del Este, bicicletas normais em Amsterdã, novos seguidores, frames de um show caro em que não se conhece as músicas. 362 dias e agora parece cair a ficha de que somos os mesmos feitos de 70% de água com colônias de bactérias na barriga.
Lembro do que disse pro meu pai o pedreiro que fez uma garagem lá em casa.
“ – Vou comprar as tintas amanhã.
- Nah, nem gasta muito. Não tem porque demão de tinta, doutor, o cal segura.”
O cal sempre dura… Até a umidade do inverno, quando as paredes nos lembram que debaixo dos pés tem mais um monte de matéria orgânica, solo, subsolo, planeta, vida e assim começam a verter água e esverdear o cômodo.  O reboco cobra a conta, descasca, desmascara o que existia antes dele.
Os 362 dias de histeria comportamental do like e viagens instagramáveis parecem não ser retroativas às necessidades milenares disso que ainda somos, entre água, terminações nervosas, traumas de infância, carência afetiva e questões mal resolvidas com os pais.
Mais uma madrugada, eu aqui com a cara grudada no Instagram, cheio de reboco, e essa pilha de folhas em branco. Na verdade, eu tô aqui sentada com dor nas costas desde umas 10 e pouco. E nada. É estranho, porque não me falta o que dizer. Pelo contrário. Foi soco no estômago de Clarice Lispector e desencontro de Vinícius de Moraes todos os dias, com tons tristes de João Gilberto- e não houve saudade que chegasse.  
Mas agora eu tenho um nó.
“-Eu não sei mais escrever. Não vou sentar e contar meu dia. Não vou fazer minireportagens sobre fatos recentes porque querem fechar o espaço no jornal, ou publicar um livro. Eu não consigo, nem quero. Olhei pela janela no Rainha durante todos esses finais de semana buscando aquela mesma inspiração, lembrei dos traumas de infância,  tentei falar sobre ter conquistado um monte do que eu já quis, até corri atrás de um homem que parecia meu tio na rua, mas acho que é coisa que não me pertence mais. Talvez eu tenha mudado, emudecido. Li todos meus textos publicados até aqui e sequer reconheci minha voz neles”, confessei ao ser pressionada por um amigo que acompanha minha coluna semanal que resmungava sobre as crônicas repetidas.
Dois meses já. Não há Beatles, Pedros, desilusões, bicicleta, ponte, Uruguai, espanhol, símbolo, santo, ou vela que me resgate dessa culpa de ir dormir com as folhas assim, em branco. Já amarelas. A caneca de chá amargo, seguida de duas de café, celular no modo avião, um álbum triste nos fones de ouvido, incenso de arruda e o sofá que me machuca as costas também são inúteis.
Lateja esse nó, vira abcessos, preguiça febril e agora tem mosquitos. Dois no meu calcanhar esquerdo. Talvez esses dois pontos minúsculos e a coceira alérgica que deixam sejam o único elemento novo nos últimos dois meses de angústia e culpa.
Não sei se volto amanhã e talvez eu tenha começado isso aqui no fim.

Comentários

Postagens mais visitadas